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Entrevista: “Aumento da temperatura global favorece os vetores” de doenças

Fernando Cupertino e Fernando Avendanho abordam a incidência e resposta às doenças transmitidas por vetores, como a dengue, no Brasil e no mundo. Dos riscos já conhecidos, como a urbanização desestruturada, aos efeitos das alterações climáticas, o tema é complexo e exige ação global.

15 Set, 2021
11 min de leitura

Responsáveis por mais de 700 mil mortes anuais, as doenças transmitidas aos humanos através de vetores (organismos como mosquitos ou carraças) são uma das maiores preocupações de saúde pública e global – e o Brasil não é exceção. Perante novas variáveis, como os efeitos das alterações climáticas, que podem agravar o risco de doenças como a dengue ou a febre amarela, é necessário repensar estratégias, afinar respostas globais e alocar investimento em investigação.

 

Na segunda parte da entrevista a Fernando Cupertino e Fernando Avendanho, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde do Brasil, o tema é, precisamente, doenças transmitidas por vetores. Com clima tropical e uma urbanização intensa e pouco organizada, o Brasil está particularmente vulnerável aos vetores – e doenças como a dengue infetam milhões de pessoas a cada ano.

A partir do contexto brasileiro, os dois especialistas abordam os maiores desafios no controlo das doenças transmitidas por vetores, o impacto da pandemia de Covid-19 na resposta a outras doenças e quais as prioridades para o futuro. Com a certeza de que, segundo Fernando Cupertino, coordenador técnico do Conselho Nacional, “se os países não se dispuserem a combater as desigualdades dentro dos seus territórios e globalmente entre nações, viveremos num mundo de desigualdades profundas”.

Como tem evoluído, nos últimos anos, a mortalidade associada às doenças transmitidas por vetores?

Fernando Avendanho (FA): As doenças vetoriais têm tido uma grande importância ao longo dos anos. No Brasil não é diferente. Aqui temos doenças mais antigas, mas também doenças reemergentes ou doenças que não tínhamos antes, como a Chicungunha ou a Zika. A mortalidade associada a estas doenças transmitidas por vetores modificou-se bastante – e em muitos casos diminuiu. De notar que o Brasil tem praticamente 80% da população urbanizada e isso favorece muito estas doenças transmitidas por vetores. Mas a conduta clínica tem grande êxito, por isso a mortalidade tem diminuído. Temos conseguido bons resultados na conduta clínica dessas doenças.

Que tipo de doenças transmitidas por vetores causam preocupação no Brasil?

FA: No Brasil, a principal doença vetorial de carater urbano é a dengue – e aí acompanhada de Chicungunha. No caso da Zika, assistimos aos casos mais importantes em 2015/16, período em que foi considerada, inclusive, uma emergência internacional. Mas, depois disso, não tivemos grandes problemas com o vírus Zika, embora não saibamos exatamente o motivo, nem qual a dinâmica do vírus. Desde a década de 1980 que não temos febre amarela urbana, mas temos a silvestre. E tivemos um evento relativamente recente, em 2017/18, de febre amarela numa região onde a doença não existia de forma epidémica. Atingiu os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, com alta mortalidade entre as pessoas que demonstraram sintomatologia mais grave, A sua gravidade deveu-se também a um desconhecimento da conduta clínica da febre amarela, que há muitos anos não tinha esse caráter epidémico no Brasil. Nessas áreas havia uma população rural considerável, mas não vacinada – apesar de a vacina estar disponível e ser recomendada.

Essa falta de imunização foi um problema generalizado?

FA: Não temos, até hoje, uma grande explicação para o aumento – tão grande e rápido – de casos nessas áreas. Mas existem trabalhos de investigação muito interessantes com modelos de corredores ecológicos, no qual os macacos (reservatórios de febre amarela silvestre) têm uma dinâmica muito importante. Os humanos que passavam por esses corredores acabavam por, acidentalmente, ser infetadas. Como não era habitual ter febre amarela, estas pessoas – normalmente mais humildes e com um nível cultural mais baixo – não estavam vacinadas. Não era uma doença tradicional nessas regiões. E vimos ainda casos de febre amarela em pessoas que se recusam a tomar a vacina. Existe uma vacina extremamente eficaz contra a febre amarela – que só se toma uma vez na vida –, mas como a doença têm esses reservatórios (macacos), não é possível chegar à proteção de rebanho [imunidade de grupo]. Então temos vários bolsões de suscetibilidade porque as pessoas não se vacinam.

 

Fernando Cupertino (FC): Daí a importância da luta que o Brasil trava já há muitos anos contra a dengue. Não temos, felizmente, febre amarela urbana no Brasil, mas o risco existe porque o vetor é o mesmo [da dengue]. Se não combatermos a dengue, não combatemos o vetor e há o risco de reurbanização da febre amarela. Isto a despeito de termos uma vacina extremamente eficaz e de termos uma comunicação intensa para levar as pessoas a serem vacinadas, em áreas consideradas pelas autoridades sanitárias como endémicas de febre amarela. De qualquer modo, é um risco e as autoridades sanitárias estão permanentemente alertas.

O perfil geográfico do Brasil favorece o risco de doenças transmitidas por vetores?

FA: A urbanização aqui é muito intensa e é uma urbanização sem muito critério. As favelas são propícias a que vários vetores se reproduzam. Vetores que não são só os mosquitos, mas também escorpiões, ratos e outros animais, que acabam convivendo com as pessoas e transmitindo doenças, que poderiam até ser evitáveis com uma política de saneamento adequada. Por outro lado, a área urbana vai abrindo o que eram antes áreas rurais, acabando por se apropriar de zonas que não eram urbanizadas e causando desequilíbrios. Esta é a nossa realidade, que nos traz realmente bastantes problemas com estas doenças.

Além da urbanização, há uma relação estreita entre vetores e clima. De que forma é que as alterações climáticas podem agravar o risco destas doenças?

FA: Existem muitas variáveis e é muito difícil definir que variações podem ocorrer e com que impacto. A mudança climática está a ocorrer no mundo inteiro. Falar de 1ºC ou 1,5ºC de aumento da temperatura global pode parecer pouco, mas tem consequências muito importantes em toda a vida da terra. E os vetores não são diferentes: um aumento da temperatura global favorece os vetores, ajudando a que fiquem mais ativos, com uma reprodução maior. Temos realmente, no Brasil, vários fatores de risco que favorecem as doenças vetoriais, como o aumento da população, a população urbanizada, a desorganização da urbanização e também o aumento da temperatura e a alteração dos regimes pluviométricos.

Com um grau de incerteza tão grande em relação aos efeitos das alterações climáticas sobre os vetores e doenças associadas, como é que os especialistas podem preparar e mitigar este risco?

FA: Não temos respostas concretas. O que se pode fazer e está a ser feito é investigação. Investigação sobre comportamento dos vetores e sobre a mudança desse comportamento com as mudanças climáticas. Só um grande investimento em investigação é que nos pode guiar para enfrentar essas doenças vetoriais, no Brasil e no mundo. Neste tema, a comunidade científica brasileira é extremamente participativa junto da comunidade mundial. Temos aqui um grande laboratório de doenças transmitidas por vetores, porque neste país tropical estamos perante vários cenários, várias realidades, climas diferentes, níveis de urbanização e concentração populacional muito diferentes…

 

FC: Nós, humanos, somos por excelência seres muito egoístas. Preocupa-me que, com relação ao futuro e às alterações climáticas, alguns governos se comportem como se isso não tivesse a menor importância, a despeito dos acordos internacionais. Continuam a emitir fatores de poluição ambiental muito fortes, em busca de poderio económico e político. E também há aqueles imbecis que nem sequer acreditam que as alterações climáticas estão a decorrer. É triste ver que, na trajetória da humanidade, ao invés de caminharmos numa evolução do pensamento e das ações, caminhamos no aprofundamento do egoísmo.

Um dos riscos associados aos efeitos das alterações climáticas é de que os vetores se possam deslocar para outras regiões e países onde estas doenças não estão presentes atualmente. Isso poderá incentivar um maior interesse e investimento global em doenças tropicais?

FC: Isso é muito evidente e temos testemunhos eloquentes no passado. Por exemplo, o surto de Ébola em África que colocou em risco os países mediterrânicos. Estes últimos rapidamente procuraram reagir, investigar, encontrar respostas. Só se enxerga a necessidade de fazer isso quando se é afetado, de alguma forma. É uma vergonha para a humanidade termos doenças negligenciadas em tamanha monta, até aos dias atuais. Porquê? Porque não há interesse da indústria farmacêutica. Porque não há interesse em investir em investigação. Porque, em geral, essas doenças só afetam países pobres.

 

FA: Exato, temos doenças que são negligenciadas por atingirem pessoas que não têm um poderio económico muito grande. Não só as doenças vetoriais, mas outras, como a tuberculose. Então não há grandes investimentos, porque não há visibilidade. Por exemplo, no Brasil convivemos com febre amarela há mais de 100 anos e convivemos com dengue há muitos anos também. Há muitos anos que já não trabalhamos com a hipótese de erradicação, mas sim com um objetivo de controlo, porque os vetores já fazem parte da fauna das cidades. Mas os investimentos em novas tecnologias acabam por ter poucos incentivos. Trabalhamos, aqui no Brasil, com tecnologias de há 40 anos. Todos os países que trabalham com doenças vetoriais usam tecnologias muito antigas. No final de contas, tecnologias antigas, com problemas antigos e resultados cada vez piores. Temos – e não só no Brasil – uma grande necessidade de investimento nesta área. Mas só quando alguns países mais ricos se sentem diretamente ameaçados com doenças de países mais subdesenvolvidos é que existe algum investimento. Aconteceu isso com a Zika, que ameaçou, de alguma forma, a reprodução humana e causou uma grande consternação no mundo inteiro. Mas já ninguém fala de Zika e de combater essa doença, assim que se percebeu que não ia ter grande impacto.

 

FC: Isto remete a uma questão que é extremamente relevante na área das políticas públicas de saúde: a questão das desigualdades. Se os países não se dispuserem a combater as desigualdades dentro dos seus territórios e globalmente entre nações, viveremos num mundo de desigualdades profundas. Um mundo que sacrifica a vida de muitos, especialmente daqueles que são mais pobres, mais vulneráveis e cuja vocalização de suas necessidades não encontra eco.

Que impacto teve a pandemia de Covid-19 na resposta a estas doenças transmitidas por vetores?

FA: Coincidentemente, e de forma atípica, nos últimos anos tivemos um número muito reduzido de casos de dengue, que ainda não conseguimos definir. No Brasil, costumam existir até cerca de dois milhões de casos de dengue no período de maior ocorrência. Por vezes, há uma confusão entre os primeiros sintomas de dengue e Covid-19, pelo que muitos casos de dengue podem ter sido confundidos com Covid-19. Esse é um grande risco porque as condutas clínicas de dengue e de Covid-19 são praticamente antagónicas. Tratar uma pensando que é a outra pode causar, até, o óbito do paciente. As autoridades de saúde e a área técnica têm de estar bem alertas para esse risco de se confundir uma doença com a outra. Até porque são duas doenças de extrema importância no Brasil.

E além da dengue?

FA: O impacto da Covid-19 na assistência [em saúde] foi extremamente importante e transversal. Houve uma reorganização da assistência no Brasil, perante o caos e o número de infetados. E, na verdade, não foi só prejudicada a resposta a doenças transmitidas por vetores. Todos os outros agravos de saúde foram afetados porque as unidades de saúde estavam sobrecarregadas com casos de Covid-19 e porque as pessoas [com outros problemas de saúde] tinham receio de ir às unidades de saúde e assim se exporem ao vírus da Covid-19. O impacto não foi só na assistência a doenças de vetores, mas na assistência a todos os problemas de saúde considerados normais e esperados na rede de unidades de saúde.

 

FC: O Conselho de Secretarias Municipais de Saúde estima que mais de mil milhões de procedimentos médicos, consultas e cirurgias eletivas deixaram de ser realizados durante a pandemia. Trata-se de uma situação de absentismo no diagnóstico e no tratamento de outras doenças, que representa um prejuízo no acompanhamento e saúde destas pessoas, mas também uma sobrecarga importante que virá sobre o sistema de saúde assim que as coisas voltarem a um “patamar de normalidade”. O sistema ainda suportará essa sobrecarga durante um certo tempo, tanto em relação a doenças vetoriais, quanto a doenças crónicas.